Encontrei este artigo hoje (andei ocupada com cabrinhas, cavalinhos e outros tantos, desde 2012 até agora...) e é, na minha opinião, a melhor crítica sobre o livro As 50 Sombras de Grey, que já li. Partilho aqui um excerto. Caso queiram ler o restante artigo, é favor consultar o número da revista, mencionado em baixo.
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O que nos leva de volta à qualidade geral da prosa - muito mais suja que o sexo, e tudo menos convencional. Como um Ulisses ao contrário, As Cinquenta Sombras de Grey é um livro que dissolve as categorias da falta de jeito, e serve como compêndio de tudo aquilo que é possível evitar:
a) Repetição. Ao longo de 548 páginas, personagens «murmuram» ou «sussurram» mais de 350 vezes, e «engolem em seco» 28 vezes. Sobrolhos são «franzidos» 78 vezes, testas são «franzidas» 21 vezes, uma sobrancelha é «erguida» ou «arqueada» 45 vezes. Lábios podem «crispar-se» (três vezes), «contrair-se» (seis vezes) ou «comprimir-se numa linha dura» (12 vezes), mas o mais provável é que um deles seja «mordido» (31 vezes).
Quanto aos olhos, embora «pisquem» ou «pestanejem» abundantemente, o mais certo é que alguém os revire (39 vezes).
Mas E. L. James (n. 1963) depressa transcende as limitações da linguagem. Como um Shakespeare da repetição, vai reconfigurando os elementos em novas e acrobáticas formas. De repente é possível «franzir» não apenas o sobrolho, mas «os lábios», «os olhos», ou mesmo o «rosto inteiro»! Há duelos fisionómicos improvisados: «Vi Christian revirar os olhos e arqueei-lhe uma sobrancelha. Ele semicerrou-me os olhos.» O excesso competitivo faz-se notar: Anastasia, joga o seu ás de trunfo quando sorri e morde o lábio inferior ao mesmo tempo. Grey responde com um ousado «arqueou uma sobrancelha, piscando os olhos», combinação que, de acordo com testes conduzidos diante de um espelho, tem o mérito de evocar plausivelmente os sinais de um acidente vascular cerebral.
b) Surrealismo inadvertido. Além dos orgasmos acima citados, temos também um simultâneo: «Dois orgasmos a desfazerem-se nas costuras, como a centrifugação da máquina de lavar roupa. Uau!» (Nota: este é um de vários momentos em que a batoteira tradução portuguesa disfarçou os disparates do original, optando por uma versão menos ridícula.)
c) Informação supérflua. No prólogo de mais uma cena de cama, somos inflamados de que Grey «tirou cada uma das meias individualmente». Ocorre que ele estava de pé, caso em que só valeria a pena esclarecer o leitor caso ele tirasse aos meias ao mesmo tempo. (Nota: é possível, com algum treino)
d) O erro básico. Um elevador sobe até ao vigésimo andar em «velocidade terminal». Sobe em velocidade terminal.
e) Indecisão metafórica + redundância. Anastasia descreve a sensação de ter Christian Grey na sua sala de estar: «Era como ter uma pantera ou um puma absolutamente imprevisível e predatório na sala de estar.» A vantagem de ter uma comparação perde-se quando é necessário elucidar os termos da figura escolhida. A imagem de um puma (ou, vá lá, de uma pantera) na sala de estar já indica (enfim) que estamos a lidar com o desconforto do imprevisível e do predatório. A não ser que o esclarecimento adicional sirva para distinguir este puma/pantera de todos os outros: os vegetarianos, e apreciadores de uma boa conversa de salão.
f) A ideia simplesmente má. Ao longo de todo o livro, Anastasia personifica o seu «subconsciente» e a sua «deusa interior», duas entidades autónomas que vão dando bitaites no interior da sua cabeça. A «deusa interior» é uma espécie de cheerleader sexual. A função do «subconsciente» (além de mostrar que a autora não sabe o que é o «subconsciente»; o que ela queria dizer era algo como «superego») é admoestar a sua portadora, utilizando os mesmos meios de todos os outros personagens:«o meu subconsciente franziu o sobrolho», «o meu subconsciente revirou os olhos», etc.
g) Personagens com mais discernimento estético do que a autora. A dada altura, já depois de dezenas de sobrolhos franzidos, encontramos isto: «Não franzas o sobrolho - disse ele, em tom ameaçador.»
h) A alusão literária contraproducente. Logo nas primeiras páginas, Anastasia ensaia esta justificação para a sua falta de interesse nos rapazes que a cortejam: «Talvez tivesse gastado demasiado tempo na companhia dos meus heróis românticos da literatura e, em consequência disso, os meus ideais e expectativas fossem descabidamente altos.» Entre os seus livros «românticos» preferidos, são explicitamente mencionados Jane Eyre - em que a principal figura masculina é um cruel e distante tiranete doméstico que enfia a sua ex-mulher num sótão quando ela enlouquece - e Tess d'Ubervilles - em que a principal figura masculina é um psicopata que viola a protagonista. São estas as expectativas «descabidamente altas» que os pretendentes ao romântico coração de Anastasia devem superar.
(...)"
Texto de Rogério Casanova, Revista Ler nº 116, Setembro de 2012
2 comentários:
Corri o texto até ao fim, para ver se tinha sido escrito pelo António Araújo, é que ele costuma escrever umas análises bem interessantes sobre livros sem interesse nenhum. :)
Não era, mas agora fiquei com curiosidade de ler o resto do artigo.
É engraçado o artigo. E talvez valha a pena procurar mais artigos de opinião deste senhor. Pelo que me pareceu, sabe o que diz!
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